Entre sem se perder...

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Adianta o meu atraso


É meio dia e marca oito.
Às quatro, oito.
Meia noite marca oito.
Quatro da manhã, oito.
Levou alguns anos...
Perdi o encontro deste horário.
Irônico me sorri o relógio
que apesar de errado
ao menos duas vezes por dia
pensa estar certo.

Pasárgada


A lembrança exalta ele:
- Sem conteúdo alcoólico.
Paz é qualquer coisa que tira-me o sossego.
Lá não sou amigo do tal rei
pras mulheres sou apenas um número.
Sem ele
a vida
é inferno:
Vou me embora.
Vou me embora
pego estrada.
Embora
rota dependência.
Avisto um posto
pra minha conveniência.
- Que casa no campo
coisa nenhuma!
Sou mesmo viciado
pelo cheiro de óleo diesel.

Máquina do tempo


A fonte negou minha senilidade
num mergulho de quero antigamente.
Distorcido tempo
dança ao som do metal
e reduz a vida ao plástico.
Passando pelo presente
o futuro se confunde
não sabendo onde quer dar...
Pela tela de plasma
previsível
a nostalgia do velho tubo de imagem.
O tédio ansioso
aguarda um descongelamento.
Deseje o fim pra não acabar.
Apago vestígios de ontem.
Não pretendam que eu seja sempre.
Visto o terno
aguardo o término.
Devolvam a dignidade das rugas
... me lanço sobre o bisturi que se oferece
esperando a morte
vestida de noiva.

Do começo ao fim


Quando te conheci
quis casar menina.
Da primeira vez
fiz amor parecendo última.
Éramos
anjos obscenos...
Havia paixão, fúria,
uma vontade de chorar incontrolável.
Agora o que quero é te perder...
pra sempre.

Pra que
toda esta história tenha
algum sentido.

Romance Policial

(...) na voz do delegado.
Começou dar queixa
- sem crime
Decido: sedução
e registro a ocorrência
me faço de vítima
ponho ela no papel da escrivã
uso toda a autoridade
e digo não pára,
conte nua.
Então ela cala
Eu - Falo sem parar.

... e trocamos de posição.

Sem cerimônia


Velhas doces mentiras passaram aqui.
Falaram de ti.
Para cada nova mulher
haverá uma centena de homens.
A despedida é lenta.
Juntos a pior forma de saudade.
De repente o fim se despede do começo
tentando manter uma certa solenidade.



quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Interesseiros Interessantes

Contemplam o madrugar da minha solidão.
Atentos sentinelas
observam a queda de meus telhados.
Fazem serenata
pra elogiar meu sono.
Perdem vidas, não o élan.
Nascem pobres
e vivem da farsa aristocrática.
Pregam a utopia da liberdade equilibrista
trajados em charmosos casacos de pele.
Desaparecem pardos
camuflados noite adentro.
Dias depois
lamentam arrependimentos.
No zinco resolvem desafetos.
São amaldiçoadas pirâmides
e cultuados adormecidos.
Divertem-se as nossas custas.
Fingem-se perigosos traidores.
Vagabundeiam à luz do dia
pra que todos saibam.
Odeiam subserviência.
Reagem sempre à altura.
Somos seus bichinhos de estimação.




Memórias de menina

Lembro das tuas duas metades...
a de cima
pouco impressionava
a de baixo
fascinante.
Rua da Praia
aglomerado de meias pessoas...
Saudades de uma Porto Alegre
que enxergava sempre maior que meu alcance.

Vênus Voyer

Vênus
nos
nus.

Labirinto


Eu precisava de muitas respostas
e tudo que eles sabiam fazer eram perguntas.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Longa noite



Acabou logo...
Nosso caso - um monólogo.

Noite longa...
Dia logo!

Inventando


Os versos que invento
são todos ao vento...
São versos que vertem em ventania
São versos vindouros que vem vindo...
Uns sim, outros vão...
São versos sem verso
são múltiplos os versos
a esvaziar meu universo.


domingo, 24 de agosto de 2008

Ah, meu pai...
E sua difícil arte de amar...
Ah, meu pai...
O homem que mais me fez chorar.


Os verdadeiros náufragos
conheci na areia.

Não endireito...


Eu
breve...
ele
em entravos...
Eu
estado de greve...
ele
preocupação com centavos...
Eu
em Porto Alegre.
Ele
em Davos.

Varandas de Deus


Os olhos de Deus não costumam descansar.
Os olhos são amarelos claros
quase brancos.
Eles desaparecem numa lilás imensidão.
Quem olha pra Deus uma única vez sabe.
Não são vistas grossas.
Sua cegueira o faz saber bem das coisas.

Caminho sem fim



Voa em tua Redenção
fazendo primavera
embaixo do viaduto
Do primeiro vôo
parte rumo as estatísticas de trânsito
rompendo a mágica presença do teu divino
sobre o asfalto.
Voa mãe andorinha...
Parte solitária
rumo a outras tristes...
Porque uma andorinha só não faz verão.

Continuemos...
Ando rinha
Em Porto Alegre.

Depende...


Eu que andei com os cabelos soltos
porque achava que nem eles
mereciam estar presos.
Eu que tenho guardado na gaveta
grilhões, grampos, correntes
pulseiras e muitas alianças.
Eu que debaixo da cama tenho sujeira
atrás da porta a vassoura.
Eu que abandonei os relógios.
Preferi não ter profissão
preferi ser meu patrão.
Eu que crio gatos por motivos óbvios.
Eu que rasgo fotografias
com a mesma facilidade que as mando revelar.
Tenho estado amarrada a esta doença.


O preço que se paga por ser rico é muito caro!

Agosto


Agosto de Camaquã
não é agosto num lugar qualquer.
É o agosto mais agosto do mundo.
Agosto de greve do magistério.
Agosto é meu pai batendo máquina
é a caligrafia da mãe que ostentava aquele “A” maiúsculo.
Vontade de respirar umidade de lagoa
de cheirar suor orvalhado
de cantar com febre
de tomar gemada.
A professora tirou para sempre aquele peso de mim.
Esquecei pra sempre o poncho lá na escola.
Esta manhã fria me fez trajar um agosto
que me levou à presença da falta...

sábado, 23 de agosto de 2008

Apavorada


Dentro da casa mora o meu vazio
sem mobília.
Mora a vontade sem fim de ocupar as coisas
de pintar qualquer parede.
Dentro da casa vivem
amantes apaixonados
casamentos desfeitos
o bebê que morreu.
Meu fantasma se nega a habitar a tal casa.
E ele persegue minha força com seu medo.
Apavoram-me as histórias que não são minhas.
Histórias de amantes apaixonados
casamentos desfeitos
bebês mortos...
Não necessariamente nesta ordem.
Estas histórias não me pertencem
mas me assustam.

Dor de venezianas abertas

Debruço a dor sobre a janela.
Entoa meu canto mais triste.
E a tristeza cantada deixa tudo lá fora contente.
Tão belo que é de se ouvir o cantar dos que sofrem.
E a beleza aplaude a dor que escapava por entre a fresta.
Lá fora a vida segue
as coisas cumprem seu papel.
Pequena perto do que vejo.
Basta sentir o perfume do jasmim
e me torno grande.
Mas não se trata de generosidade do jasmineiro.
Pra se sentir feliz nem é preciso se pôr a janela.
Ás vezes, é possível ver através das paredes.

Ave!


Abro-as pra que possas alçar vôo.
Afasto devagar.
Pousa doce bico
às voltas desse néctar.
E passa passarinho.
Faz desta fenda
pra sempre teu ninho.

Amarga

Ele passa
e sinto frio.
Ele quente
e sinto frio.
Ele forte
e sinto frio.
É revigorante.
Eu fraca, sem açúcar.
Quantas vezes passei café pra dar sentido a cozinha...

O Mapa do Anjo



Olho teu olhar velho anjo menino
Examino como quem examinasse
a anatomia destas ruas que são tuas...

(E por serem tão exclusivamente tuas, são também minhas!)

A dor infinita que sinto
é a dor das ruas de Porto Alegre
que te lembram tomado pelo sol de Mario na Alfândega.

Sempre me busco na esquina do teu verso.
São em tuas paredes que vejo as tais nuanças.
Tornei-me uma destas tantas moças bonitas
das ruas em que não andas mais.
(Mas às cinco - horário dos anjos - brincas em frente a casa com teus cataventos).

Quando eu for, um dia desses,
Assim como és...
As próprias ruas deste porto
Serei visível só pra àqueles que podem ver o nada.

Que faz com este ar seja o teu olhar
Suave inscrito misterioso
Cidade agora de meu andar

(Deste nem tão longo andar) a acompanhar teu consagrado repouso...

Lá fora é dentro


Em dias de névoa
pra onde voam os pássaros?
Em dias de rigoroso inverno triste
cumprimentamos os mendigos
mais chegados.
Às vezes nubla qualquer coisa.
Só em mim.
As cores trajam sofisticadas capas de chuva e saem pra passear na neblina .
Parece como ir ao sepultamento de um ex-namorado.
A fumaça fala por minha boca
tudo o que em mim se condensa.
Só se pensa poder voltar pra casa anos atrás
onde o fogão à lenha cozinha uma longa expectativa de neve na panela de pressão.
A manta se enrola desejando abraços.
Nos preparamos pra dormir
enquanto Deus compõe
fundos pra dias de chuva.
E a beleza nos pretende enganar
se vestindo com outra roupa.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Há uma espécie insuportável:
os que acertam com humildade
os mesmos aqueles
que erram com soberba.

Para que fale mais alto


Das vezes que Deus me procurou
fora sempre escutado.
Das audiências nossas
sequer sussurro
...aos berros
só ouço o seu calar.

Sobre ser poeta


O poeta é simplesmente
o dono do pomar de limões...
cuja terra só permite
estas deliciosas frutas.

Resgate de pedido

Não há o que assegure um porto.
Resta a vista com muita terra.
Dos muitos naufrágios
conto apenas com esta pesada embarcação
de poucos pés.

A qualquer momento



Entendo aquela moça, já quase senhora
segura pela xícara.
Entendo aquela jovem senhora
que contempla o bafo que lhe acena.
Entendo aquela senhora
tomando esperança num único gole.
Entendo aquela que queria ser menina
por isso suspira café.
Entendo aquela mulher
que fuma entre o descansar do braço.
Entendo esta velha senhora
que passa suas mágoas no filtro
mistura quatro de açúcar e mexe.
Entendo esta que se segura
pretendendo a proteção da asa.




Distorcida


Construíram minha existência.
Imagens verdadeiras
opiniões falsas.
É como se minhas imagens fossem falsas também.
Memória é a única testemunha viva.
Fizeram com que acreditasse em algo que eu não era.
De repente, cheguei a acreditar.
Convivi com toda a mentira sobre mim.
Hoje quando vejo a tia gorda de alguém dizendo:
Quando tu eras pequena...
Tenho pena da criança!
Tudo que pretendem?
Fazer a fulaninha pensar que é pequena
e pro resto da vida.
Fazem a fulaninha acreditar na versão deles
sobre ela própria.
Aquele filme estava certo...
Todos deveriam ter acesso ao seu banco de dados.
Todos poderiam reeditar algumas partes.
Odeio as pessoas reconstruindo aquilo que a gente era.
Todos lembram do naufrágio
do barquinho afundado no papel.
Recriar um eu que não existe
faz pensar que era uma criança má
maquiavélica.
Quando na verdade sou apenas um adulto
que por causa disso não cresço.

Confidencial

Na data de hoje perdi meus arquivos.
Por conseqüência precisei te esquecer.
Não me lembro de ti nem com esforço.
Às vezes, te vejo na rua e não te reconheço.
Às vezes, me vejo contigo e não me reconheço.
Às vezes, muito raramente, lembro de ti.
Com esforço, lembro de ti.
Na verdade é raro lembrar que tu existiu.
Em verdade não lembro quando foi que te esqueci.
Mas esqueci qualquer coisa minha contigo.
E te peço, se possível fosse
qualquer dia desses
se não fosse muito
gostaria
se tu te lembrares
(...)
passa aqui e me deixa.

Fechando as janelas


Há três dias não arrumo a cama.
Há uma semana não lavo a louça.
Há quinze dias não cozinho.
Há um mês não fazemos amor.
Há um ano não moderamos a fala.
Há três anos não tiramos o lixo pra rua.

A vida toda escreverei poemas.


quinta-feira, 21 de agosto de 2008

1981

O escorregador permanece o mesmo brincando na areia.
Cidade do interior do meu interior.
Hoje chega-se de novo em ti.
Barulho inconfundível.
Meia tarde
de roldanas que recolhem roupas que vibram.
Dos pássaros teus guardo a pena
que agora sacode o vento
na mesma árvore que marcava encontro às seis.
Havia tanta beleza naquela monotonia feia tua.
Havia tanta praça no que fazia!
Tudo tão perfeito, irretocável.
O destino parecia inscrever-me ali.
Mas fora uma visão desta minha traidora
que fez questão de por abaixo a pira
que pretendia aprisionar.
Por sorte a lembrança me tem de volta.
Vez ou outra o mesmo sol retoma aquele
que me parece um agosto.
Perdi neste lugar uma irmã
que nunca mais voltou.
Continua lá pequena.

Alquimia


Às vezes, eu e a cozinha nos estranhamos...
A copa é a parte mais íntima da casa.
Quem abre minha geladeira, pode tudo.
Minha cozinha é cheia de detalhes
apegadas a pormenores.
saturada como eu e o resto da casa.
Móveis modernos, decoração barroca.
Há pouca coisa de comer na cozinha
e a utilizo à moda laboratório
só para experimentos.
Na calada da noite exercito bruxaria.
Preparo e sirvo venenos.
Ainda assim, às vezes, eu e a cozinha nos estranhamos.
Mulher e cozinha combinam.
São sensuais, envolventes.
Cozinhar é uma prática semelhante à masturbação.
Ter prazer em servir é característica do feminino.
As mulheres amam a subserviência consentida.
As mulheres deveriam fazer amor na cozinha.
Em meio a um polvilhar e outro
banquete.
Às vezes, eu e a cozinha nos estranhamos.
Há na cozinha um magnetismo reencarnacionista
faz incorporar uma vó
qualquer tia italiana.
Minha mãe blasfemava muito quando estava na cozinha
maldizia aquele lugar
recomendava as filhas que fugissem.
Desde a Idade Média
os mesmos fogões à gás queimam mulheres amargas que fazem cozido.
Por isso minha mãe dizia palavras feias.
O código das bruxas antigas
que cozinhavam bem são palavras escabrosas.
Minha bruxa velha odiava seu caldeirão porque incorporava
bruxas mais velhas
muito mais maledicentes.
Elas se reuniam para falar mal dos homens.
E muitas delas cozinhavam grupos deles nos tais panelões.
Isso quando não os transformavam em sapos.
Aqueles que mais tarde vieram a ser os tais príncipes.
Que hoje são psicólogas que se encarregam de matar.
O problema das bruxas antigas
é que não fizeram amor perto do fogo.


Quando escrevemos...


Quando escrevo somos muitos.
Perdôo no grafite.
Picho alegria nos muros com grandes insultos.
Quando escrevo somos muitos.
Muitos deles me atrapalham.
Quando escrevo tem em mim uns cem sem-vergonhas.
Escrevo palco para os meus cínicos atuarem
maquio minha vontade de nos fantasiar
e reescrevo algo melhor dessas nossas vidas.
Sou bem pouca pra mim.
Quando escrevo somos muitos.
Somos muitos...
Eu e todos juntos.
Eu e todos os gatos que fizeram minhas madrugadas.
Quando escrevo quero ser como quando faço amor
que pretensiosa tento destronar Deus.
Quando não consigo dizer, gritamos.
Quando grito, perco a razão.
Grito o tempo todo.
Não encontro o meu silêncio.


Poeira

Areia pequenina
me faça ficar grossa, me faça ficar fina...

Enterrem consigo lembranças só minhas.
Quero tomar parte na poeira.
Pedrinha da montanha
serei entregue à brisa
e soprada pelo vento
eternamente confundida
com o tapete estendido ao longo do mar.

(Nas menores partículas há maior concentração de Deus)

Areia da grossa, areia da fina...
Areia me faça
fim.


quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Sentada na roca

Trancafiar-me-ei.
Fiarei meus dias
e os dias me fiarão.

Ensimesmada.

Em si mesma
a mesma dificuldade
de me render a mim.

Fio os dias
que de mim só desconfiam.

Passamos eu e eu mesma
os dias nos desafiando.

Devedora
dos meus dias
fiadores
observo a sombra solitária
e lhe tenho pena...
Nem eu sou capaz de lhe fazer companhia.






História muda


Meu pai perdeu seus dedos na máquina de escrever...
Seus dedos nunca mais voltavam.
Uma vez que iam
nunca mais voltavam...
Meu pai odiava sua letra
amava suas mãos.
No caderno de caligrafia
o destino garranchado de um datilógrafo.
Meu pai envelheceu a máquina de escrever.
A máquina de repente ficou cansada.
Aquele pipocar era minha canção de ninar.
Um dia só se ouviu o silêncio.
A máquina de escrever emudeceu.
Então meu pai começou contar histórias da máquina de escrever.
Lembro de todas as histórias.
Histórias que só interessavam a um escrivão...
Nunca mais vi a máquina de escrever conversando com meu pai.
Então a máquina aposentou o tempo
e arquivou meu pai.
Meu pai conhecia o mundo com a ponta dos dedos
não com a palma da mão como os pais normais.
Meu pai dizia que as paredes tinham ouvidos...
Os dedos do meu pai deveriam receber proteção à testemunhas.
Meu pai só silenciava diante da máquina de escrever.
Até que um dia a máquina tagarela emperrou meu pai num silencio misterioso.
A lembrança da máquina não cala.
A vida do meu pai muda.

Poema pra mim


Sou singular.
Tudo que digo
primeira pessoa.
Nos outros
só o que me reflete.
Sou indiferente ao diferente.
Minha verdade
é falsa modéstia.
Nasci salão de espelhos
Tudo que faço
pura vaidade!

... de tanto me ver
cego.

Dias de Marcílio


Dobrar aquela esquina é como entrar por uma passagem secreta.
Bons tempos da Marcílio Dias.
Aquela ruazinha da Azenha parece só existir pra mim.
Ali
parada no tempo.
Parece existir só na minha imaginação.
Tem uma parte da Marcílio que não mudou.
O edifício grande é o único
o homem da venda é o mesmo.
O primeiro já morreu
mas o substituto é o mesmo.
O jogo do bicho
no mesmo lugar.

Ainda está lá o corredor misterioso
a vitrina da confeitaria dobrando a curva.
Dona Cota morreu
mas continua a sacada abanando em seu lugar.
E aquele cheiro de flora
de umbanda, monóxido de carbono.
No fim da rua demora uma avenida.
Esperava ônibus
e passava a vida lotada.

Dali, sempre dali
estando em milhares de outros lugares
continuei indo até o outro lado
onde não faz muito
construíram um shopping.

Tem um pedaço da Marcílio que não mudou.
Tem um trecho de mim que é igual.

Baú de atavismos


Desço o cerro do mate piazote.
Na parede do vento, recuerdos.
Vasculho minhas encruzilhada.
A memória velha abre sorriso
que nem china em dia de baile.
Lá vem época perdida na poeira
trazendo uma tia menina pela mão.
A água derrama charqueada quente.
Pelo nó na garganta
passa boi, passa sol, passa geada...
Retrato de chuva desbotada, o resto da boiada.
E até me brisa o beijo da primeira namorada.
No vinco do pé
a pedra descalça anda faceira
na rua que me tem nostalgia.
Atávico é o nome que se dá
às terras do sem fim
que vez o outra
rasga a gente dentro da gente.
O orgulho do vô Maneco deu uma ajeitada
na bomba outra manhã.
Passou por aqui
recomendando bom dia.
Veio à boca o gosto da vidraça quebrada
e a dor do Chorão que teve um tombo roubado.
Tiro a pólvora de cima do baú
que agora só guarda poeira
cicatrizes de minha mãe
e a casca de ferida de outras tantas.
Pelo olho da fechadura
a memória ramelenta.
Alguém destrinchou as estradas que se atravessaram por mim.
Desenterro histórias
num desfile antigo de sobrenomes.
Passa uma colcha de família
acobertando geração.
Passam meus retalhos
que retovam cuias de mão em mão.
A casa mimada vivia à beira da calçada
hoje descasada.
Minha irmã moça também continua solteira.
Entre um roncar e outro
vem se chegando
um lembrar de mim guri.
Metido a domador de donzela
me lembro xucro, arredio.
Suspiro vida a fora um vento
que o atavismo cisma soprar de volta.
Aquento longe o pensamento
passo e repasso a idade.
Continuo mateando esta palavra amarga
que só por grossura teimo não chamar saudade.

E o tempo chia uma falta loca.

Calafrio

Feche bem os olhos...
conte até dez...
e não desaparecerá.
Pena imperceptível
voando quase macio.
Dançam ao redor da gente
numa conferência de plumas
que apesar do tempo
parecerão recém desprendidas.
Desejam morada
e perseguem o antigamente.
São folhas secas que um dia fizeram outono
são como fotos desfocadas
são como cartas amarelo-borradas.
Arrastam lembranças como correntes.
Fantasma é a morte com saudade da vida.

Cada um no seu cárcere privado.


Quando não se podia falar
nunca se disse tanto...
Cada balbuciar gritava...
Quando se foram os anos
anistiamos nossos sorrisos.
Então, de tanto nos contentar
demos causa à tolice.
Plena liberdade
clandestinas idéias.
Nostalgia paralítica
que nos acostumou calar.
Hoje, a revolução
caminha desacompanhada.
Pelas ruas, saídas de colégio, no muro,
a moda desfila o nada de novo.
Quem diria...
Saudade da palavra presa
do corredor molhado...
Saudade das saudades que não pude sentir...
Saudades do cheiro de óleo diesel
Saudades dos canos, das canas...
de todos generais sacanas.
Saudades duma genialidade que perdi...
da arma que me tomaram.
Saudades dos cartazes de teatro arrancados!
Por favor, se eu estiver errado:
- me censure!
Agora quando escrevemos cale-se
significa cálice mesmo.
Embriagues que nos faz reféns
de torneiras que um dia choraram chumbo.
Bebamos à memória daqueles que morreram.