Entre sem se perder...

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Sentada na roca

Trancafiar-me-ei.
Fiarei meus dias
e os dias me fiarão.

Ensimesmada.

Em si mesma
a mesma dificuldade
de me render a mim.

Fio os dias
que de mim só desconfiam.

Passamos eu e eu mesma
os dias nos desafiando.

Devedora
dos meus dias
fiadores
observo a sombra solitária
e lhe tenho pena...
Nem eu sou capaz de lhe fazer companhia.






História muda


Meu pai perdeu seus dedos na máquina de escrever...
Seus dedos nunca mais voltavam.
Uma vez que iam
nunca mais voltavam...
Meu pai odiava sua letra
amava suas mãos.
No caderno de caligrafia
o destino garranchado de um datilógrafo.
Meu pai envelheceu a máquina de escrever.
A máquina de repente ficou cansada.
Aquele pipocar era minha canção de ninar.
Um dia só se ouviu o silêncio.
A máquina de escrever emudeceu.
Então meu pai começou contar histórias da máquina de escrever.
Lembro de todas as histórias.
Histórias que só interessavam a um escrivão...
Nunca mais vi a máquina de escrever conversando com meu pai.
Então a máquina aposentou o tempo
e arquivou meu pai.
Meu pai conhecia o mundo com a ponta dos dedos
não com a palma da mão como os pais normais.
Meu pai dizia que as paredes tinham ouvidos...
Os dedos do meu pai deveriam receber proteção à testemunhas.
Meu pai só silenciava diante da máquina de escrever.
Até que um dia a máquina tagarela emperrou meu pai num silencio misterioso.
A lembrança da máquina não cala.
A vida do meu pai muda.

Poema pra mim


Sou singular.
Tudo que digo
primeira pessoa.
Nos outros
só o que me reflete.
Sou indiferente ao diferente.
Minha verdade
é falsa modéstia.
Nasci salão de espelhos
Tudo que faço
pura vaidade!

... de tanto me ver
cego.

Dias de Marcílio


Dobrar aquela esquina é como entrar por uma passagem secreta.
Bons tempos da Marcílio Dias.
Aquela ruazinha da Azenha parece só existir pra mim.
Ali
parada no tempo.
Parece existir só na minha imaginação.
Tem uma parte da Marcílio que não mudou.
O edifício grande é o único
o homem da venda é o mesmo.
O primeiro já morreu
mas o substituto é o mesmo.
O jogo do bicho
no mesmo lugar.

Ainda está lá o corredor misterioso
a vitrina da confeitaria dobrando a curva.
Dona Cota morreu
mas continua a sacada abanando em seu lugar.
E aquele cheiro de flora
de umbanda, monóxido de carbono.
No fim da rua demora uma avenida.
Esperava ônibus
e passava a vida lotada.

Dali, sempre dali
estando em milhares de outros lugares
continuei indo até o outro lado
onde não faz muito
construíram um shopping.

Tem um pedaço da Marcílio que não mudou.
Tem um trecho de mim que é igual.

Baú de atavismos


Desço o cerro do mate piazote.
Na parede do vento, recuerdos.
Vasculho minhas encruzilhada.
A memória velha abre sorriso
que nem china em dia de baile.
Lá vem época perdida na poeira
trazendo uma tia menina pela mão.
A água derrama charqueada quente.
Pelo nó na garganta
passa boi, passa sol, passa geada...
Retrato de chuva desbotada, o resto da boiada.
E até me brisa o beijo da primeira namorada.
No vinco do pé
a pedra descalça anda faceira
na rua que me tem nostalgia.
Atávico é o nome que se dá
às terras do sem fim
que vez o outra
rasga a gente dentro da gente.
O orgulho do vô Maneco deu uma ajeitada
na bomba outra manhã.
Passou por aqui
recomendando bom dia.
Veio à boca o gosto da vidraça quebrada
e a dor do Chorão que teve um tombo roubado.
Tiro a pólvora de cima do baú
que agora só guarda poeira
cicatrizes de minha mãe
e a casca de ferida de outras tantas.
Pelo olho da fechadura
a memória ramelenta.
Alguém destrinchou as estradas que se atravessaram por mim.
Desenterro histórias
num desfile antigo de sobrenomes.
Passa uma colcha de família
acobertando geração.
Passam meus retalhos
que retovam cuias de mão em mão.
A casa mimada vivia à beira da calçada
hoje descasada.
Minha irmã moça também continua solteira.
Entre um roncar e outro
vem se chegando
um lembrar de mim guri.
Metido a domador de donzela
me lembro xucro, arredio.
Suspiro vida a fora um vento
que o atavismo cisma soprar de volta.
Aquento longe o pensamento
passo e repasso a idade.
Continuo mateando esta palavra amarga
que só por grossura teimo não chamar saudade.

E o tempo chia uma falta loca.

Calafrio

Feche bem os olhos...
conte até dez...
e não desaparecerá.
Pena imperceptível
voando quase macio.
Dançam ao redor da gente
numa conferência de plumas
que apesar do tempo
parecerão recém desprendidas.
Desejam morada
e perseguem o antigamente.
São folhas secas que um dia fizeram outono
são como fotos desfocadas
são como cartas amarelo-borradas.
Arrastam lembranças como correntes.
Fantasma é a morte com saudade da vida.

Cada um no seu cárcere privado.


Quando não se podia falar
nunca se disse tanto...
Cada balbuciar gritava...
Quando se foram os anos
anistiamos nossos sorrisos.
Então, de tanto nos contentar
demos causa à tolice.
Plena liberdade
clandestinas idéias.
Nostalgia paralítica
que nos acostumou calar.
Hoje, a revolução
caminha desacompanhada.
Pelas ruas, saídas de colégio, no muro,
a moda desfila o nada de novo.
Quem diria...
Saudade da palavra presa
do corredor molhado...
Saudade das saudades que não pude sentir...
Saudades do cheiro de óleo diesel
Saudades dos canos, das canas...
de todos generais sacanas.
Saudades duma genialidade que perdi...
da arma que me tomaram.
Saudades dos cartazes de teatro arrancados!
Por favor, se eu estiver errado:
- me censure!
Agora quando escrevemos cale-se
significa cálice mesmo.
Embriagues que nos faz reféns
de torneiras que um dia choraram chumbo.
Bebamos à memória daqueles que morreram.