
Entrou mais alguém.
Além de mim
mais alguém
e mais alguém
e mais
e mais...
até não poder entrar ninguém.
Nunca achei que teria tanto espaço.
Voltei e lá estava...
o parapeito baixo da janela
a jardineira embaixo da janela.
E embaixo da janela
eu.
Olhava admirada a altura do prédios
e é claro
o porto.
Os prédios cresceram ainda mais
enquanto o cais permaneceu ali
no mesmo lugar
esperando que eu voltasse.
Cheguei nesta tarde e nada mudou.
Meus olhos descascaram
e as paredes choravam o mês de julho.
Depois de vinte anos
passaram um a um os anos.
Imaginava antigamente como seria
se a janela decidisse cair comigo.
Tudo teria acabado bem antes dos vinte anos passarem.
Mas os vinte anos passaram
e estamos eu e a janela de volta
uma diante da outra.
Depois de vinte anos
ainda vivendo o mesmo dilema.
São os plátanos que iniciam o ano.
São suas gentis folhas que iniciam tudo.
Ali começa a colheita festiva dos próximos dias.
Piso sobre seus tapetes durante meses
decorando um outono permanente.
A luz empresta ao ano
a possibilidade de sair trajado em terracota.
Nada de fogos
nenhuma barulheira
sem espumante
ou acidentes de trânsito.
O começo deveria ser mais solene.
Comemorar com explosões o fim
não o começo.
E se alguém que amo morrer no ano em que vibrei pela chegada?
Não me perdoaria.
Cigarro
e mais cinza.
Derrubo o cinzeiro
Bebo cinzano
Chega...
A máquina emperrou.
Saudades de Maria Joaquina
e de seus pêssegos.
Sonho ser autor um dia.
Desta tatuagem me arrependo.
Converti em letras minhas ânsias.
A folha surpreende letras.
Insetos investigam a lamparina.
Apago a luz.
Lá se vão letras...
Continua esquisofrênica esta noite
que me confunde com outra.
Árvore frondosa de sobrenome simples.
Herdo toda a insatisfação tua vó
trocada por uma gaiteira.
Na página seguinte – Linda de morrer...
a primeira esposa de meu pai.
Só não mais bela que minha mãe.
Lindas primas.
Quem diria...
dariam no que deram.
Cheio de vida
o tio suicida casa
com a mulher que nunca amara.
Prefiro álbuns de figurinha.
Lá pelas tantas
apareço...
bem mais honesta.
Saudades de uma irmã que ria de verdade.
... um incesto
algumas mães solteiras...
A cada virar
tragédias sexuais.
O que não suporto é a pose
no papel pra bonito.
Gênia lógica
que revela escondendo.
Minha preocupação é com as horas,
precisamente com os próximos vinte anos.
Estarei lá, bela, quase cinqüentona.
Mas e tu?
Chegarás aos oitenta?
Mais que a fraqueza das unhas, a reposição de hormônio,
a perda natural do meu vigor...
me preocupo com a tua vitalidade.
Continuarei com cabelo comprido pra disfarçar e,
certamente,
até lá,
uma prótese atenuará crises de depressão.
Já não serei tão vistosa...
Mas e tu?
Terás o mesmo ímpeto para levantar da cama?
Serás vigoroso fazendo amor?
Serás impetuoso ao levantar?
Ou já não levantarás mais?
Ou já não mais?