Entre sem se perder...

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

1981

O escorregador permanece o mesmo brincando na areia.
Cidade do interior do meu interior.
Hoje chega-se de novo em ti.
Barulho inconfundível.
Meia tarde
de roldanas que recolhem roupas que vibram.
Dos pássaros teus guardo a pena
que agora sacode o vento
na mesma árvore que marcava encontro às seis.
Havia tanta beleza naquela monotonia feia tua.
Havia tanta praça no que fazia!
Tudo tão perfeito, irretocável.
O destino parecia inscrever-me ali.
Mas fora uma visão desta minha traidora
que fez questão de por abaixo a pira
que pretendia aprisionar.
Por sorte a lembrança me tem de volta.
Vez ou outra o mesmo sol retoma aquele
que me parece um agosto.
Perdi neste lugar uma irmã
que nunca mais voltou.
Continua lá pequena.

Alquimia


Às vezes, eu e a cozinha nos estranhamos...
A copa é a parte mais íntima da casa.
Quem abre minha geladeira, pode tudo.
Minha cozinha é cheia de detalhes
apegadas a pormenores.
saturada como eu e o resto da casa.
Móveis modernos, decoração barroca.
Há pouca coisa de comer na cozinha
e a utilizo à moda laboratório
só para experimentos.
Na calada da noite exercito bruxaria.
Preparo e sirvo venenos.
Ainda assim, às vezes, eu e a cozinha nos estranhamos.
Mulher e cozinha combinam.
São sensuais, envolventes.
Cozinhar é uma prática semelhante à masturbação.
Ter prazer em servir é característica do feminino.
As mulheres amam a subserviência consentida.
As mulheres deveriam fazer amor na cozinha.
Em meio a um polvilhar e outro
banquete.
Às vezes, eu e a cozinha nos estranhamos.
Há na cozinha um magnetismo reencarnacionista
faz incorporar uma vó
qualquer tia italiana.
Minha mãe blasfemava muito quando estava na cozinha
maldizia aquele lugar
recomendava as filhas que fugissem.
Desde a Idade Média
os mesmos fogões à gás queimam mulheres amargas que fazem cozido.
Por isso minha mãe dizia palavras feias.
O código das bruxas antigas
que cozinhavam bem são palavras escabrosas.
Minha bruxa velha odiava seu caldeirão porque incorporava
bruxas mais velhas
muito mais maledicentes.
Elas se reuniam para falar mal dos homens.
E muitas delas cozinhavam grupos deles nos tais panelões.
Isso quando não os transformavam em sapos.
Aqueles que mais tarde vieram a ser os tais príncipes.
Que hoje são psicólogas que se encarregam de matar.
O problema das bruxas antigas
é que não fizeram amor perto do fogo.


Quando escrevemos...


Quando escrevo somos muitos.
Perdôo no grafite.
Picho alegria nos muros com grandes insultos.
Quando escrevo somos muitos.
Muitos deles me atrapalham.
Quando escrevo tem em mim uns cem sem-vergonhas.
Escrevo palco para os meus cínicos atuarem
maquio minha vontade de nos fantasiar
e reescrevo algo melhor dessas nossas vidas.
Sou bem pouca pra mim.
Quando escrevo somos muitos.
Somos muitos...
Eu e todos juntos.
Eu e todos os gatos que fizeram minhas madrugadas.
Quando escrevo quero ser como quando faço amor
que pretensiosa tento destronar Deus.
Quando não consigo dizer, gritamos.
Quando grito, perco a razão.
Grito o tempo todo.
Não encontro o meu silêncio.


Poeira

Areia pequenina
me faça ficar grossa, me faça ficar fina...

Enterrem consigo lembranças só minhas.
Quero tomar parte na poeira.
Pedrinha da montanha
serei entregue à brisa
e soprada pelo vento
eternamente confundida
com o tapete estendido ao longo do mar.

(Nas menores partículas há maior concentração de Deus)

Areia da grossa, areia da fina...
Areia me faça
fim.